sábado, 12 de abril de 2025

Entre Muros e Grades: A Medicina na Linha Tênue do Sistema Prisional


Por: Isaac Baraúna - Médico


Entre Muros e Grades: A Medicina na Linha Tênue do Sistema Prisional


A porta de aço rangeu, ecoando não apenas pelo corredor, mas também dentro de mim. Ali, naquele instante, a realidade da minha nova jornada profissional se materializava de forma palpável: eu, um médico, adentrava o universo complexo e singular do sistema prisional. Deixava para trás a familiaridade dos consultórios e hospitais, para mergulhar em um ambiente do qual a rotina é ditada por protocolos de segurança, cada olhar e cada palavra carregam um peso diferente.


A adaptação não foi imediata, tampouco trivial. Acostumado à autonomia inerente à prática médica, deparei-me com a necessidade constante de alinhar minhas condutas aos procedimentos que regem a vida intramuros. Em cada consulta, exame e prescrição, era permeada pela vigilância atenta dos policiais penais, figuras onipresentes que, com seu treinamento especializado, garantem a ordem e a segurança de todos.


Confesso que, ao contrário de um receio inicial que talvez outros pudessem sentir, a presença constante da força policial sempre gerou em mim uma profunda sensação de segurança. A realidade é que muitos daqueles pacientes são pessoas de alta periculosidade e que representam um risco significativo para a sociedade. Saber que os policiais penais estão ali, zelando pela ordem, permite que eu me concentre no meu trabalho com a tranquilidade de que a segurança de todos está sendo priorizada.


Meu juramento hipocrático sempre me guiou por um caminho de cuidado e confidencialidade irrestritos. No entanto, com o tempo e a convivência diária, essa percepção se transformou em um genuíno respeito e admiração pela dedicação desses "guerreiros de farda". Compreendi que eles não são meros guardiões, mas sim, parceiros indispensáveis na intrincada engrenagem do sistema. Sua expertise em manter a ordem é fundamental para que eu possa exercer minha função médica de forma eficaz e segura.


Aprendi a observar seus olhares atentos, a decifrar seus gestos discretos, a entender que sua prioridade, a segurança, é também um pré-requisito essencial para que eu possa exercer minha função com o mínimo de interferência e com a máxima proteção. Aos poucos, a rigidez dos protocolos deixou de ser vista como uma mera formalidade e se consolidou como um escudo, garantindo um ambiente de trabalho seguro para o exercício da medicina em um local de alta complexidade e vulnerabilidade.


E no meio desse cenário singular, nós, a equipe de saúde, nos inserimos como um elo vital. Somos os portadores do cuidado, os responsáveis por zelar pela saúde física e, muitas vezes, mental de uma população que, em sua maioria, carrega consigo um histórico de vulnerabilidade social e de saúde. Nossa missão transcende a simples aplicação de conhecimentos técnicos; exige sensibilidade, escuta atenta e a capacidade de construir pontes de confiança em um ambiente do qual a desconfiança é, por vezes, a moeda corrente.


É particularmente gratificante trabalhar em um ambiente que nos desafia constantemente a buscar a resolutividade dos problemas de saúde dentro da unidade prisional. Há uma necessidade constante de raciocínio clínico estratégico para identificar situações de risco e otimizar o cuidado, buscando sempre fazer o melhor possível para evitar uma transferência desnecessária para um ambiente hospitalar externo, o que invariavelmente envolve riscos adicionais de segurança para a sociedade. Em muitos momentos, somos também o ponto de apoio para a própria equipe de policiais, que, exposta diariamente a situações de alta tensão física e emocional, também necessita de suporte e atenção à sua saúde.


Atuar como médico no sistema prisional é caminhar em uma linha tênue entre a ciência e a segurança, entre o cuidado individual e as normas coletivas. É aprender a falar uma linguagem que transcende os jargões médicos, adaptando a comunicação a diferentes realidades e níveis de compreensão. É, acima de tudo, reafirmar diariamente o compromisso com a vida e com a dignidade humana, mesmo em um contexto onde essas palavras podem, por vezes, parecer distantes da realidade imediata.


A experiência de ser médico "entre muros" me transformou profundamente ao longo dos mais de quatro anos dedicados a esta realidade. Ampliou minha visão sobre a complexidade da sociedade, a importância da empatia em contextos desafiadores e a força da colaboração interdisciplinar. Aprendi que a saúde, assim como a segurança, são pilares essenciais para a construção de um ambiente mais justo e humano, mesmo dentro das limitações impostas pelas grades. E sigo nessa jornada, lado a lado com os policiais penais, meus colegas de trincheira, com a convicção de que, juntos, podemos fazer a diferença na vida daqueles que, por ora, têm o mundo exterior como uma lembrança distante, mas que também necessitam de  cuidado e atenção à sua saúde.



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