terça-feira, 25 de março de 2025

AINDA BEM QUE CHOVEU

 Por Walber Rufino | 25 de março de 2025




 Foi um acidente. Mas podia ter sido uma crônica de um encontro mal resolvido com o destino.

O relógio marcava sete e pouco da manhã. Eu mal tinha saído de casa para assumir o papel de Comandante de Socorro dos Bombeiros da Capital. Ao passarmos o serviço, nem houve tempo para a tradicional prova diária. A sirene tocou três vezes — sinal de que o chamado era grave.

Chegamos à Central e recebemos a informação: tombamento de caminhão, com vítimas presas nas ferragens, na curva de baixo da ladeira do Grotão. Saímos em três viaturas — era tudo que tínhamos: eu no ABS-1, acompanhado pelos ABT-1 e AA-1.

Olha o tempo dessa história... Três décadas já correram, e ela continua viva na lembrança.

Naquele dia, o sol fazia questão de lembrar que o calor não pouparia ninguém — nem no céu, nem na memória de quem viveu aquela cena.

Era um caminhão azul, um Ford já de muito uso. Na boleia, dois passageiros da vida: Djalma, o motorista, e Cida, acompanhante... Cida grávida. E de ressaca.

Passaram a noite anterior na feira do Grotão, bebendo. Talvez rindo, talvez chorando — quem sabe? A vida dos dois parecia daquelas que se escreve na calçada e se apaga com a primeira chuva. Histórias de esquecidos pela sociedade, que ninguém lê. Mas naquela manhã, o céu permaneceu seco.

Djalma perdeu a direção. Talvez pelo sono, pelo dia amanhecendo, ou pela bebida ingerida, numa tentativa de anestesiar os desencontros de um dia exaustivo de trabalho. O caminhão tombou à beira da Rua Tenente-Coronel Albertino Francisco dos Santos — aquela que separa os Funcionários II, III e IV, e liga direto ao Grotão.

Pouco depois, um guincho passava pelo local. Tentamos usá-lo para desvirar o veículo, mas com Djalma e Cida presos nas ferragens, nada feito.

A cena exigia mais que força. Exigia engenho, coração e improviso.

Para retirar o Djalma, tudo o que tínhamos era um arco de serra emprestado por um serralheiro da vizinhança — um desses heróis invisíveis que aparecem sem serem chamados, movidos pela solidariedade. Ele se chamava Francisco. Que Deus o tenha.

E Cida... ah, Cida.

Estava ali, "sentada" de ponta-cabeça, suada, grávida, assustada e exausta. A mistura do álcool da noite anterior com o calor da manhã fazia o ar pesar como chumbo.

Foi aí que eu pedi um milagre.

Liguei uma linha direta do ABT-1 para simular uma chuvinha. Daquelas mansas, de lavar a alma — ou ao menos refrescar a pele.

E não é que funcionou?

Ao ser retirada do caminhão, ainda grogue da vida e do acidente, Cida soltou um suspiro e murmurou:

— Ainda bem que choveu… tava insuportável ali.

Mal sabia ela que aquela chuva era encenação. Mas quem disse que o alívio precisa ser real pra fazer efeito?

Com esforço e coração, nossa equipe — amparada por valorosos heróis anônimos da comunidade — retirou o casal das ferragens. Acomodamos os dois na ambulância como foi possível, com o cuidado de quem carrega vidas nas mãos. Depois, os conduzimos ao Hospital Edson Ramalho.

 

 Sobre o autor

 

Walber Rufino é Coronel Veterano do Corpo de Bombeiros Militar da Paraíba. Preside a Academia de Letras dos Militares Estaduais da Paraíba (ALMEP), é vice-presidente da Academia de Letras dos Militares Estaduais do Brasil e do Distrito Federal (ALMEBRAS), membro correspondente do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB) e diretor regional do Instituto Brasileiro de Segurança Pública (IBSP), Seção Paraíba. Narrador das urgências da vida e guardião da memória pública, dedica-se a transformar cenas de socorro em histórias que precisam ser lembradas.

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