sexta-feira, 14 de março de 2025

ARTIGO: O que não enxergamos por trás dos muros, autora: Cinthya Almeida

 

Cinthya Almeida

    O blog O REPÓRTER vai postar artigos escritos por jornalistas e outros profissionais. Hoje a estreia dessa série é com a policial penal da Paraíba, Cinthya Almeida, Diretora da Penitenciária de Recuperação Feminina Maria Júlia Maranhão,  em João Pessoa. O texto de Cinthya está publicado no livro Mulheres que fazem acontecer no Sistema Penitenciário da Paraíba, obra publicada em 2024, projeto editorial assinado pelo jornalista, escritor e policial penal Josélio Carneiro de Araújo. Lembramos que o livro está disponível em PDF no site da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária da Paraíba (SEAP-PB) e no Instagram da Escola de Gestão Penitenciária da Paraíba (EGEPEN-PB). 

https://drive.google.com/file/d/1JLfRDiNHlPF9fMxxYaK2BTdH11g6_Wx2/view?pli=1

Vamos ao artigo:

 O que não enxergamos por trás dos muros


Nunca me imaginei trabalhando em uma unidade prisional, mas a necessidade de emprego e, a busca pela tão sonhada estabilidade funcional me fizeram, em 8 de junho de 2008, prestar concurso público para o cargo de agente de segurança penitenciária do Estado da Paraíba. Com a divulgação dos aprovados da primeira etapa do certame, veio a tão esperada classificação, resultado de muitos dias e noites dedicados à preparação para o concurso, e junto a ela, toda ansiedade que me acompanhou em suas demais fases. O medo do desconhecido, as críticas de muitos e as notícias na mídia sobre o ambiente prisional, por vezes, me fizeram duvidar se, de fato, seria uma opção sensata, prosseguir. Acredito que esse tenha sido um pensamento recorrente à maioria dos postulantes ao cargo. 

Passados alguns meses, em 16 de janeiro de 2009, vivenciei uma das sensações mais gratificantes que já havia experienciado até então, a de ler meu nome estampado no Diário Oficial da Paraíba, agora como servidora efetiva do meu estado. Lotada na então Secretaria de Estado da Cidadania e Administração Penitenciária, minha primeira unidade de trabalho foi a Penitenciária de Segurança Máxima Geraldo Beltrão, em Mangabeira. Meu primeiro dia de trabalho foi um misto de deslumbramento e medo. Tudo em mim era dúvida; tinha consciência de que estava ingressando em um ambiente hostil e totalmente inexplorado por mim. Em um dos ergástulos mais antigos do estado, a Máxima, como era conhecida, concentrava reclusos da mais alta periculosidade, cumprindo penas pelos mais diversos crimes. 

A primeira atribuição que me foi dada, foi a de realizar o recadastramento de todos os visitantes que tinham parentes ali recolhidos, bem como recepcioná-los nos dias de visita íntima e social, que aconteciam às quartas-feiras e aos domingos, respectivamente. Logo, passei a ter contato com os familiares dos internos reclusos àquela unidade. Eram mães, pais, esposas, irmãos, filhos, de todas as partes do estado, que quase semanalmente vinham ao encontro dos seus entes. Sabia seus nomes, sobrenomes e a cela do parente a ser visitado. 

Depois de poucos meses, passei a desempenhar minhas funções na área administrativa da Unidade, ocasionalmente, tive contato com apenados em suas sindicâncias. De pronto vinha à mente a imagem de seus entes, que religiosamente ali estavam semanalmente para acolhê-los. Aos poucos, o medo e a insegurança foram substituídos pela cautela e prudência, mas sempre com a firmeza nas ações e consciência de nosso papel enquanto agentes penitenciários, era o da contenção qualificada e o cumprimento da lei. 

Nossa rotina diária se limitava ao banho de sol, pagamento de alimentação, aula, e se necessário, algum atendimento médico externo, pois à época, nossas unidades não contavam com equipes de saúde para atendimento dos apenados, além dos dias de visitação. Por vezes, me questionava sobre o papel do agente penitenciário naquela estrutura - Será que nosso papel é apenas de abrir e fechar cadeados?

Embora tivesse ciência da resposta às minhas inquietações, não fazia a menor ideia de qual papel poderia ser desempenhado pelo agente de segurança, além da repressão, nessa estrutura tão complexa - chamada “sistema prisional”.

Prosseguindo a minha jornada laboral, por alguns meses, ocupei o cargo em comissão na Penitenciária Romeu Gonçalves de Abrantes, popularmente conhecida como PB1/PB2. Por ausência de uma equipe de saúde na unidade, fiquei responsável não só pela distribuição de medição prescrita por meio de atendimentos externos, mas também pela marcação de consultas e exames, por vezes, os acompanhava juntamente com a equipe de escolta, para agilizar os procedimentos. Hoje, praticamente todas as Unidades prisionais do estado, contam com equipe multidisciplinar para assisti-los. Penso que minha passagem pelo PB1/PB2 me impôs um dos meus maiores desafios, até então, “o desafio de olhar aquelas pessoas, não como criminosas”, mas como pacientes que necessitavam de assistência médica. Que independente dos meus pré-conceitos e crenças, a pena imposta a cada um deles, era a de privação de liberdade, e não de direitos, de dignidade; era meu dever funcional assisti-los da forma eficaz, segura e legal. 

Em seguida, prestei serviço na Penitenciária Feminina Maria Julia Maranhão, compondo a equipe de plantonistas e em tempos, na Penitenciária Flósculo da Nóbrega (Roger), por alguns meses, onde compunha a equipe feminina responsável pela revista das visitantes, em dias de visita social e íntimas.

Em 10 de março de 2011, recebi uma nova missão. Talvez a mais complexa e desafiadora que já havia recebido; fui nomeada diretora da Penitenciária Feminina Júlia Maranhão, na capital paraibana. A função de gerir uma casa penal era algo inimaginável, não só para mim, mas também para os meus pares. Alguns de nós tínhamos apenas dois anos de trabalho em unidades, outros tinham sido nomeados há pouco mais de três meses. Sabia do peso que carregava, não só por ter em minhas mãos, a responsabilidade pelas mulheres que ali se encontravam recolhidas, mas também por ser uma das primeiras agentes penitenciárias a ser nomeada em um cargo de gestão na pasta; sabia que se falhasse, outras portas não se abririam para minhas companheiras, tão capazes e comprometidas. 

Encontrei uma penitenciária amontoada de mulheres, algumas delas com suas crianças, outras com doenças crônicas e outras necessidades pontuais. Muitas sem assistência jurídica ou material. O fato é que tínhamos um enorme número de pessoas com suas necessidades particulares e quase nenhuma estrutura. A luta era diária e o aprendizado também. Aprendizado esse só adquirido com a partilha, a troca com aquelas mulheres. Aos poucos, naturalmente, passamos a ouvi-las, nem sempre compreendê-las, mas ouvir suas necessidades, suas angústias, e por vezes, nos identificarmos com algumas questões, mas sempre com cuidado e cautela, no cumprimento dos deveres e normas internas. 

O peso da reclusão, o abandono, a rejeição, impotência e a falta de perspectivas estavam presentes em quase todos os relatos das internas. Muitas delas não recebiam visitas dos seus entes, eram estigmatizadas e rejeitadas, inclusive por seus companheiros (aqueles que não estavam cumprindo pena em unidade masculina); as paredes das celas eram cheias de rabiscos com nomes de parentes e fotografias dos filhos; elas nada podiam fazer em relação a isso. Algo terrivelmente perturbador a essas mulheres, era a falta de perspectivas. A grande maioria sequer esboçava qualquer expectativa pós-muros do cárcere. 

A assistência religiosa buscava trazer um alento a essa população, que carecia de apoio. Enquanto isso, mantínhamos a ordem e disciplina em meio a esse caos e ao turbilhão de emoções. Nossos plantões eram de 24 intermináveis por 72 horas de descanso. A nossa inexperiência em lidar com as questões diárias, fazia com que elas parecessem ainda maiores, e só o tempo, a experiência e o trato direto com aquelas pessoas reclusas, nos fizeram, aos poucos, lidar com mais racionalidade, inteligência emocional e a tão primordial humanidade. 

Aos poucos, fomos percebendo que, apesar de novo, lidávamos com questões que, por vezes, já enfrentávamos em nossos cotidianos e dramas pessoais; bastava apenas a sensibilidade para perceber. À medida que a rotina nos fazia compreender o nosso papel naquele ambiente, nossa labuta diária se tornava mais comum para nós, talvez por uma espécie de efeito do aprisionamento. Afinal, pela nossa escala de trabalho, passamos 1/3 das nossas vidas confinadas.

No que diz respeito ao poder público, nos anos seguintes foram implementadas políticas voltadas para mulheres encarceradas nas áreas de educação, saúde, lazer, esportes, qualificação profissional, além do acolhimento às famílias e egressas do sistema prisional, na tentativa de humanizar o ambiente carcerário e fazer cumprir a lei. No interior das prisões, passou a ser mais frequente a oferta de cursos, de vagas no ensino regular, oportunidades de ocupação remunerada, além dos diversos projetos de ressocialização desenvolvidos em todas as unidades prisionais do estado, mesmo não contemplando essa população em sua totalidade.

No caso da Penitenciária Feminina Júlia Maranhão, o “Castelo de Bonecas”, projeto criado em minha gestão à frente da Unidade, porém feito a muitas mãos, é uma experiência exitosa, desenvolvida pelo Governo da Paraíba, através da Secretaria de Estado da Administração Penitenciária (Seap-PB), com apoio do TJPB, através da Vara das Execuções Penais, que já qualificou e certificou mais de uma centena de mulheres, em seus quase 12 anos de existência.

No projeto, as artesãs que por ele passaram, receberam/recebem remuneração pelas peças confeccionadas e remição de pena pelos dias trabalhados no ateliê de produção das bonecas de pano. Participam de feiras de exposições de artesanato por todo o estado e fora dele. Porém, arrisco-me a dizer que o maior ganho dessas mulheres, dessas artesãs, foi a retomada das rédeas de suas vidas; algumas delas, desacreditadas pela família, por seus pares, pela sociedade e por elas mesmas. Há relatos das que conseguiram reatar relações familiares rompidas por ocasião da prisão, passaram a tecer sonhos, planejar, traçar metas e começaram a trilhar, ainda dentro da prisão, seu caminho pós muros do cárcere. 

O Castelo trouxe a essas pessoas a possibilidade de um recomeço, fugindo do estigma que carregam os egressos do sistema prisional, através do empreendedorismo como ferramenta de transformação social. São inúmeras as tentativas de fazer do cárcere um ambiente humanizado, onde são assegurados direitos e dignidades da pessoa humana, mesmo sabendo que as oportunidades não alcançam a todos os usuários do sistema, por falta de vagas, por falta de adesão das próprias reeducandas, ou por qualquer outro motivo não mencionado. Afinal, algumas atividades lhe são apenas facultadas. 

Oportunizar, de fato é essencial, mas ainda assim, baseada em longos 15 anos compartilhando o mesmo ambiente com as internas, familiares, demais policiais penais, equipe multidisciplinar de saúde e corpo de professores, é uníssono, que o primeiro passo a ser dado em um ambiente hostil por sua natureza, como é o da prisão, em uma tentativa de adentrar ao universo da pessoa privada de liberdade é a “escuta”. 

Todo processo de humanização do ambiente se inicia quando nos permitimos escutá-las, enxergá-las, quando conseguimos compreender muitos de seus porquês através dessa escuta, nos permitimos praticar o exercício diário da empatia, de nos colocarmos no lugar do outro, de perceber que do outro lado da grade existem mulheres como nós, com problemas reais, com angústias, sofrimentos, traumas, estrutura familiar frágil, entre outros fatores, e que mesmo tendo cometido crimes que as levaram a situação temporária de reclusão, para pagarem suas dívidas perante a lei, a linha que nos separa dessas pessoas é muito tênue e que, por vezes, pode ser definida apenas por uma única escolha capaz de mudar toda história de uma vida. Contudo, não é minha intenção apontar causas do aprisionamento feminino, da reincidência, vitimizar essa parcela da população, tampouco listar as causas da violência que assolam a nossa sociedade, mas para afirmar que, assim como essa vivência nesse universo paralelo mudou a minha vida, transformou minha visão de mundo, me fez enxergar o outro, me fez crescer como profissional e como pessoa, então - se eu mudei porque o meu semelhante, separado de mim apenas por uma barreira física, a grade, também não pode ser transformado pelas vivências no cárcere? - Sim, eu acredito!

Porém, se quisermos empreender na tentativa de modificar essa tão dura realidade, operar tal transformação, podemos e devemos optar não por uma fórmula mágica, mas pela via mais simples, óbvia e que, reforça ainda mais a crença não no que foi lido nas literaturas sobre o tema, mas no que foi vivido dia após dia no pátio da penitenciária, no calor dos corredores dos pavilhões, em cada noite de custódia hospitalar, de cada conflito interno mediado, de cada reprimenda, em cada choro contido ao presenciar a separação de bebês de suas mães reclusas, de cada palavra de conforto nos momentos de desespero, que, tratar seres humanos como seres humanos, efetivamente dará início ao verdadeiro processo de “Ressocializar e Recomeçar.”

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